A dor é inevitável. O sofrimento é opcional.
Carlos Drumonnd de Andrade
Eu sei o que eu disse. Eu disse que estávamos juntos naquela ponte. O que não sabíamos era se deveríamos passar por ela ou simplesmente pular, mesmo que isso significasse dois corpos despedaçados no chão. Morreríamos? Ou a queda seria amortecida por anjos? Não sabíamos o que poderia de fato ocorrer após o momento do salto. E eu lembro o que você disse e o que você fez. Pegou a minha mão e perguntou: como saber sem tê-lo?
O que não sabíamos era que nessa mesma ponte havia uma questão nítida e óbvia que nos machucaria mas que, por um momento, preferimos acreditar que se diferenciaria. Mas o que não era evidente era o jogo sujo que alguns armavam durante o nosso encontro na ponte. Antes de saltar, não tínhamos idéia de que já estávamos sendo condenados. Por outro lado, mesmo desconhecendo os fatos, sabíamos que aquele poderia ser o nosso único vôo.
E graças ao total desconhecimento de causa, nos olhamos, respiramos fundo, apertamos a mão um do outro e nos lançamos daquela ponte. Enquanto nos atirávamos, enquanto o chão não chegava, enquanto os corpos não se destroçavam no chão, a gente voou. Voamos. Libertamos as asas que há muito escondíamos embaixo daqueles casacos pesados. Voamos. E não foi um vôo solo, mas sim livre, solto, alto e só nosso, de mais ninguém. Foi um vôo verdadeiro. Fomos verdadeiros. Verdadeiramente fiel a nós mesmos. Verdadeiros em nosso salto, em nosso vôo e leal àquele desejo de voar junto, ao menos uma vez.
Eu não queria avaliar riscos nem conseqüências. Eu não quis saber se aquilo iria me matar. Era um vôo, era o vôo. O vôo ao seu lado e o vôo daquela menina que fui. O vôo que não tivemos coragem de fazer porque nos aprisionamos e tivemos medo.
O chão? Doeu. A queda machucou bastante. O solo era de concreto puro como a realidade dura e fria. E o curioso disso tudo foi que eu não quis me lamentar pelo tombo, pelas feridas e nem pela dor. Eu sobrevivi, embora uma parte de mim tenha morrido. Mas ao mesmo tempo, sei que precisávamos perder o juízo para poder voar daquele jeito. Tínhamos de ser irracionais, tínhamos de olhar apenas o lado poético do salto. Tínhamos de nos enxergar e dar espaço ao nosso sonho. Tínhamos o direito sim. E não poderíamos pensar por muito tempo e muito menos em ninguém. Caso contrário, não teríamos voado.
O que me mantém viva é lembrar do vôo, é saber que eu voei. Mesmo que eu saiba que tenha durado segundos, que tenha acontecido por um instante apenas, eu me convenço todos os dias que foi um dos meus melhores vôos. Único, mágico, secreto e só meu. Só nosso.
E mesmo sabendo que não há outra ponte, que nos perdemos após o vôo, eu sei que eu posso voar outras vezes. Vôos mais altos, mais brilhantes e mais livres do que aquele. E posso fechar os olhos e sentir aquele vôo que fiz ao seu lado. Sou capaz de sentir ainda o vento no meu rosto, o frio na barriga e toda aquela emoção que o coração aos pulos quis viver.
Obrigada pelo vôo. Eu não morri. Antes disso, eu voei.
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